Prestes a completar um ano que ingressei na Irmandade de Alcoólicos Anônimos é natural, quase imperativa a realização de um pequeno inventário, buscando assim avaliar o que A.A. tem feito comigo; que mudanças aconteceram, quais os caminhos ainda por trilhar; cresci? Está valendo a pena?
Ao chegar numa sala de A.A., em março de 2004, levado por uma sobrinha a meu pedido, não estava bêbado nem de ressaca; não vinha de sanatório, clínica de reabilitação, hospital ou delegacia, mas estava preso; preso ao domínio da vergonha, do desespero, da solidão, da insensatez, da doença do alcoolismo.
Também não havia perdido minha profissão, aposentado há seis anos; nem bens materiais, nem o amor de minha família, mesmo já cansada; estava perdendo meus conceitos de moralidade, de caráter, que caracterizam os chamados homens de bem.
Buscava e não encontrava aquele Roberto que aos 16 anos ingressou na vida militar, galgou até o penúltimo posto e se aposentou com honras.
Aquele que queria e conseguiu ser exemplo aos seus comandados; aquele que era dócil numa profissão dura, pois não enxergava incompatibilidade, e estava certo.
Quando cheguei em A.A. não era o mesmo homem; o álcool, em seis anos, tomou-me amargurado, solitário, desesperado, cansado, exemplo sim, de vergonha.
Hoje sei que estava perdido; cada dia me aprofundava mais no meu poço; se cheguei ao fundo não sei, mas conheci o suficiente para querer sair.
Eu sabia que deveria sair; conselhos e lágrimas dos que verdadeiramente me amam não faltaram; trabalhos no candomblé e passes no espiritismo também não. Pai Nosso e Ave Maria, fizeram por muito tempo parte do cotidiano das minhas ressacas, até que aos poucos, o ceticismo foi também se instalando. Minhas preces tomaram-se apenas o lamento de um pobre coitado.
Numa das últimas bebedeiras, de ressaca, ao lado de minha mãe e de uma prima querida, fiz uma novena e minha última promessa, desta feita não por acaso, ao padroeiro das causas impossíveis, São Judas Tadeu; na verdade até ajudou, pois consegui não beber durante mais de um ano. Contudo, a partir do terceiro mês, o álcool não me saía da cabeça e o medo de decepcionar particularmente minha mãe era o que me segurava; a solidão era a mesma da época em que bebia e, ao completar um ano, comecei a me programar para beber, o que aconteceu logo depois.
O álcool venceu mais uma vez. Aí sem dúvida reside toda a diferença: eu estava sem beber mas não atingira a sobriedade que vim encontrar no Programa de Alcoólicos Anônimos.
Ao contrário daquele período, hoje A.A., além de me permitir o “fechar da garrafa", mostra-me a necessidade, seja através das reuniões de recuperação ou da literatura, de aprender a viver sóbrio, e que a sobriedade está ao alcance de todos.
A Sobriedade chega a mim através de um passeio rumo à espiritualidade contida nos Doze Passos, que aos poucos vou tentando seguir. É verdade que às vezes paro, descanso; penso não conseguir, pois sair de um processo de auto-destruição para o de auto-crescimento não é muito fácil, mas vou caminhando.
Interessante é que o "remédio" tem se mostrado cada vez mais doce; exceto pelo medo de ser feliz se justifica a relutância em tomá-lo.
Ao término desse ano como membro de A.A., descubro-me feliz. Não aquela felicidade a que já me referi em outros escritos, contida nos primeiros copos, aquela ilusão fornecida pelo inimigo álcool para me fragilizar nas incontáveis "saideiras". Esta é fruto da sobriedade, é uma felicidade tranqüila, sem pressa, incorporada ao cotidiano de uma caminhada na orla; no despertar consciente da véspera e no adormecer em paz no meu sítio, onde leio um bom livro, cuido de um canteiro, observo um passarinho, converso com Deus, que é o meu Poder Superior.
É a felicidade do haver retornado a uma sala de aula, onde, aos meus 51 anos e convivendo com a garotada mais jovem, descubro que o álcool me poupou alguns neurônios, que me permitem ainda aprender o Francês e o melhor, com prazer.
É constatar que a minha vida não acabou quando parei de beber, tornou-se mais interessante, mais rica, mais bela.
A.A. tem me ajudado a descobrir a cada dia esse Deus maravilhoso que está em todas as coisas, inclusive dentro de mim.
Hoje, graças à Irmandade, sou menos religioso e mais espiritual; ganhei uma fé, à qual atribuo o principal esteio da minha eterna recuperação.
Li em algum lugar: "felizes aqueles doentes que precisam do Poder Superior para a sua recuperação"; nada mais verdadeiro. Não dependemos de cirurgia ou medicamentos, dependemos apenas de Deus.
Assim vou prosseguindo, conectando-me diariamente com esse Poder que me recupera; agradecendo e descobrindo que o caminho é longo, estou apenas começando.
As feridas do ontem podem fechar, mas as cicatrizes devem permanecer; elas sempre me ajudarão a planejar o meu amanhã.
Se Deus e eu quisermos, serão mais vinte e quatro horas de sobriedade. E eu quero, pois está valendo a pena!
Roberto Salvador/BA Vivência n° 96 Jul./Ago. 2005 Colaboração Grupo Carmo Sion de AA